NOTA SOBRE A CONDENAÇÃO DE RAFAEL BRAGA

            rafaelbraga

        Todo poder emana do povo, para o povo e pelo povo, devendo sempre ao povo retornar. Se o Estado se volta contra seu povo, este povo tem o direito inalienável de destituir este Estado, usando para isso todos os meios que estiverem à sua disposição. Assim, as sociedades democráticas nascem legitimando a possibilidade da revolução popular sempre que o ‘pacto social’, pelo qual supostamente o povo transfere seu poder ao Estado, for rompido e o Estado não corresponder aos anseios da vontade coletiva. As sociedades democráticas fazem isso porque surgiram de uma revolução e nada melhor do que legitimar a sua própria origem, lembrando sempre que foi sobre o sangue das cabeças decepadas dos nobres que se pôde impôr, senão como realidade, ao menos como valores, ‘a igualdade, a fraternidade e a liberdade’. Que depois disso tudo, uma elite tenha continuado detendo os meios do Estado para a manutenção de seus privilégios, opondo assim claramente Estado e sociedade, não pode esconder a origem histórica revolucionária das chamadas ‘democracias modernas’. Não que se queira dizer com isso que os ares desta revolução tenham realmente algum dia chegado por aqui. Mas se, ainda hoje, menos de dez por cento da população retém os meios de produção, as propriedades e o lucro sobre o que é produzido, como falar em democracia sem sentir vergonha? Como fingir não ver que é sobretudo o poder do povo o que o Estado que representa os interesses da elite econômica pretende evitar?

        Hoje, quando milhares são executados, retirados de suas casas, torturados nas favelas, para a manutenção do lucro de alguns e da concentração de capital; hoje, após o povo ter ido às ruas exigindo poder para o povo (isto é, exigindo o que lhe seria supostamente um direto), quem parmanece encarcerado? A condenação de Rafael Braga ontem é mais um capítulo da guerra do Estado contra seu povo, contra aqueles que o sistema capitalista, extremamente violento, diga-se de passagem, decidiu que devem morrer para que o poder permaneça de alguns poucos. É um capítulo da reação ao que significou junho do ano passado, um capítulo com uma mensagem clara: poder para o povo não haverá.

            Não há dúvida de que jamais houve democracia real, de que a maior parte da população, negra e pobre, vive sob a opressão da violência do Estado, da intervenção militar, dos grupos de extermínio, da milícia, da arbitrariedade da instituição absolutista que é a polícia (que se auto-legisla, julga e executa). No período da ditadura militar, a tortura e a violência policial foram “democratizadas” com a chamada ‘classe média’, isso deu visibilidade à violência do Estado. Mas quando a supressão de direitos volta a ficar restrita às camadas excluídas, finge-se que ela não existe. Hoje, quando a violência do Estado atinge às elites ou à chamada classe média, chama-se ‘estado de exceção’. Mas esta não é, nem jamais foi, a exceção nas favelas. Nós não lutamos contra a suposta exceção, nós pretendemos combater a regra, isto é, este sistema falsamente democrático. O Estado se recrudesce, mostra sua cara e se volta mesmo contra as camadas incluídas da população sempre que estas apóiam a luta dos excluídos, lutam ao lado destes e denunciam a violência contra eles. O Estado sempre estará pronto para punir exemplarmente quando este for o caso. Mas o importante é que permaneça um silêncio conivente da maior parte da sociedade ao terrorismo imposto pelos agentes estatais e do poder econômico que estes representam às camadas excluídas. É extremamente sintomático desta situação e expressivo desta sociedade que vivemos que, quando o povo foi às ruas exigindo poder ao povo, quem tenha permanecido primeiro preso e condenado seja negro, pobre e morador de rua. É a resposta punitiva que o Estado quer dar, ressaltando que, aconteça o que acontecer, o Estado e o poder permanecerão nas mãos das elites e não do povo.

         Nós estamos sendo criminalizados por defender o poder do povo. Sim, nós fomos perseguidos, presos, estamos impedidos de nos manifestar e talvez sejamos condenados, esta é a exceção. Toda sorte de arbitrariedade e manipulação foi usada contra nós para que isso fosse possível. Mas existem muitos a quem a voz é permanentemente negada de muito modos. Que quem permaneça encarcerado seja hoje um morador de rua é a regra, quando o que se pretende evitar antes de tudo é o poder do povo. Nós lutamos pela igualdade, em princípio, sabendo da desigualdade que há, de fato. Para que nossa luta não signifique tão somente nossa criminalização, nosso próprio silenciamento e banimento, é preciso que ela seja também a luta da sociedade em geral. Todos que permanecem em silêncio diante da condenação absurda de Rafael Braga, que não se mobilizam (mesmo sem medida restritiva que impeça a participação em manifestações), que se mantém sentados em seus privilégios, são cúmplices da reação à junho, cúmplices da guerra do Estado contra seu povo, cúmplices da manutenção do encarceramento de Rafael Braga e do extermínio de outrxs tantxs invisibilizadxs pelo sistema. Quem reconhece este Estado como democrático, esta falsa ordem como intocável, contribui para a manutenção desta sociedade injusta, desigual e excludente.