Divulgação: Ciclo de Debates Anarquistas na UERJ

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Sobre o Ato do Alunos na UERJ Contra o Comandante Geral da UPP

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          O reitor da UERJ declara que abrirá sindicância contra os estudantes que realizaram ato na última segunda-feira contra o comandante geral da UPP, que lá estava para o lançamento de um livro. Os estudantes estão sendo chamados de fascistas por não quererem a polícia na Universidade! Impressionante, que alguns professores da UERJ, os mesmos que se calam quando a polícia mata nas favelas, ficaram revoltados com a manifestação estudantil e também chamaram os estudantes de fascistas. A mídia oficial, a mesma que manipula as informações e só dá espaço e voz para os discursos dominantes, que representam os seus interesses, considerou a manifestação um atentado contra a liberdade de expressão. Ora, o comandante geral da UPP já tem voz demais nesta sociedade, pode falar na TV Globo, pode falar na revista Veja. Agora, aqueles que são silenciados diariamente pela sua política de segurança genocida não podem se colocar dentro da Universidade, nem sequer entram lá. A Universidade faz alinhamento ideológico sim, não poderia não fazer, e a ideologia que defende está bem clara. Não há debate democrático, se as condições dadas não são igualitárias. Ocorre que quando se está em condições desiguais, é fácil reclamar por suposta democracia e direito ao debate. Sendo que o argumento final, nas favelas, é o recurso à força.

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          A liberdade de expressão na nossa sociedade é extremamente restrita e seletiva, varia de acordo com as condições econômicas e o quanto servem aos interesses dominantes, não se pode fingir que isso não existe. Quando, de fato, condições igualitárias são requeridas, a liberdade de expressão é facilmente suspensa e também o direito à manifestação. Liberdade de opinião não é poder, abstratamente, se estabelecer o diálogo, é ter condições concretas para se dialogar de igual para igual, condições materiais, inclusive para se ser ouvido. A liberdade não é um princípio boiando no vazio, a liberdade é um construto social ou não é nada além de uma palavra bonita para se legitimar ações nada louváveis. Basicamente, a polícia mata na favela. Isso, tudo bem, sem problemas, não atenta contra a democracia. Depois, a polícia vai na Universidade e defende isso discursivamente. Daí, quem protesta contra essa defesa “qualificada”, é fascista. Vamos falar do que se trata de fato. Não me venha com esta de que as pessoas podem discordar livremente, as pessoas estão sendo assassinadas, diretamente e indiretamente, as pessoas não podem discordar livremente. O seu ‘poder discordar livremente’ está afundado em privilégios, aliás, os mesmos que me obrigam a não me calar diante de uma situação como esta. Mesmo que já me tenham mostrado o quão relativo é meu ‘livremente’ e o quanto ele pode ser rapidamente suspenso.

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          Se eu soubesse fazer uma charge, juro que desenhava o comandante geral da UPP estourando a cabeça de negros pobres favelados (pois são vários tiros como este que se seguem do seu comando) e dizendo para estudantes universitários que protestam que eles são fascistas porque não querem debater livremente com ele sobre isso na UERJ! Fica a encomenda para algum amigo capacitado. Se não, fica a imagem por conta de criatividade de cada um.

SURGIMENTO DAS PRISÕES NO ‘VIGIAR E PUNIR’ DE MICHEL FOUCAULT

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TEXTO USADO COMO BASE NA AULA PÚBLICA MINISTRADA NA SEMANA DE SOLIDARIEDADE AXS PRESXS POLITICXS

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Foucault analisa o surgimento das prisões na modernidade como padrão de punição juntamente com o surgimento de toda uma nova tecnologia de poder disciplinar da qual o modelo de prisão denominado Panopticon – proposto pela primeira vez por Bentham e cujo projeto arquitetural orientou a maior parte das prisões a partir de 1830 – seria uma das maiores expressões. Como se sabe, Foucault diferencia o poder clássico do poder exercido na modernidade. O poder clássico seria um poder negativo, em sua maior parte repressivo. Ao passo que o poder moderno, ao contrário, na sua maior parte se exerceria através da disciplina, isto é, na criação e normalização de sujeitos, a dominação seria interiorizada pelo indivíduo através da moral. Neste sentido, a disciplina seria internalizada, e esse poder seria muito mais eficaz que o poder repressivo, nos sentido de gerar indivíduos dóceis e aptos ao trabalho.

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Uma das características fundamentais do modo de exercício do poder disciplinar é através da vigilância constante, da possibilidade de todos observarem a todos. A ideia básica é que a modernidade “vigia para não precisar punir” e cria uma série de saberes, pretensamente humanistas, que de fato justificam essa sua tecnologia de controle. O modelo de prisão Panopticon seria o oposto da masmorra, ao invés de esconder para dominar, controlar pela visibilidade constante. Tal modelo expressaria bem esta tecnologia de dominação na medida em que consistiria em uma construção em forma arredondada, com uma torre no centro voltada para o lado de dentro de uma circunferência dividida em celas vazadas com duas janelas, uma delas correspondendo às janelas da torre de observação e a outra voltada para o lado de fora, permitindo que a luz atravesse toda a cela. Com a contraluz, um vigia na torre central poderia ver todos os condenados. O modelo é o da observação constante, que manteria a todos os observados sob controle. O interessante é que os observados nem precisariam estar sendo mesmo vistos de fato, apenas em princípio. A tecnologia da observação constante teria que ser internalizada para mantê-los sob controle e alerta, desde que eles pudessem ser vistos sem ver aqueles que o veem. É o estado consciente de visibilidade que assegura a eficácia deste modo de exercer o poder.

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Além disso, o modelo do Panopticon também é o modelo do isolamento individualizante, cada sujeito isolado em sua cela não é membro de uma comunidade, não é antes de tudo um ser social e passível de associação, não é passível de comunicação com os outros, é apenas o objeto de um saber. Sem influências recíprocas, sem complôs, a ordem seria garantida.

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Na modernidade, este modelo de prisão estaria espalhado por todo corpo social. O modelo de punição moderno seria um dispositivo de sujeição extendido por toda a sociedade através de determinados valores interiorizados em cada indivíduo. Neste sentido, cada sujeito, cada identidade seria também um ‘policial’ e só seria uma identidade por isso. O poder da observação, no modelo da vigilância constante, produz um saber e esse saber produz mais controle. Da disciplina teria nascido as ciências humanas enquanto técnica de controle social e delas teriam surgido outras disciplinas. Embora este poder seja utilizado nos aparelhos de Estado – nas prisões, nas escolas, nos internatos, nos quartéis, nos hospitais, nas fábricas – ele se fixaria antes de tudo nos discursos, no adestramento dos corpos, na disciplina dos indivíduos. Tratar-se-ia de tirar das pessoas o máximo de tempo possível, de treinar seus corpos para que produzam mais sendo dóceis e úteis. É uma sociedade que toma como base um modelo de prisão e, ao mesmo tempo, um modelo de prisão que expressa muito bem o modo de controle geral na modernidade.

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O que Foucault procura ressaltar é que é na medida em que aparece um ser humano tomado como fundamentalmente livre, isto é, que a liberdade passa a ser definida como a característica básica da humanidade e pressuposto do pacto social na sociedade democrática de direito, que surge também a possibilidade da supressão desta liberdade como pena, modo de punição, por excelência. Isso só faz sentido em uma sociedade na qual a liberdade é um valor central, supostamente um bem passível de ser possuído por todos e que, portanto, também poderia ser tirado de modo igualitário de qualquer um. Não que não existissem prisões anteriormente. A penalidade da detenção faz uso de mecanismos de coerção já elaborados em outros lugares, mas o modo de punição clássico não é o encarceramento, mas o suplício, a tortura pública do corpo como modo ritual de trazer à tona a verdade do crime e expurgá-la. O que a modernidade carrega de novidade junto com seu pretenso humanismo é, na medida em que o ser humano é reconhecido como sujeito, a instauração de técnicas punitivas capazes de serem aplicadas à sua suposta alma, justamente como modo de objetivá-lo. Assim, a ostentação da punição do corpo é substituída por toda uma gama de saberes: medicina; psicologia; criminologia, que deveriam incidir diretamente sobre a consciência. É neste sentido que os mecanismos disciplinares tomam conta da instituição judiciária, relegam ao esquecimento outros modos de punição, e institui-se a prisão como modo de punição básico das “sociedade civilizadas”. Assim, se a modernidade confere liberdade, é justamente com a possibilidade de tirá-la, se confere subjetividade, é com a possibilidade de assujeitamento. E se, em pouco mais de um século, o clima de obviedade se transformou, não desapareceu. Conhecem-se todos os incoveninentes da prisão, e sabe-se que é tão perigosa quanto inútil. E, entretanto, não vemos o que pôr em seu lugar. (FOUCAULT, 1975, p.196) Mas é exatamente na medida em que a prisão é um modelo cuja possibilidade deve perpassar toda a constituição de um corpo social tomado como formado por indivíduos livres que podemos notar que ela apenas acentua mecanismos já encontrados em outros âmbitos da constituição da sociedade. A prisão acompanha a manutenção do controle e o poder disciplinar na sociedade moderna desde a maternidade, na creche, na escola, na fábrica, no quartel, nas instituições religiosas, nos hospitais. A prisão deve apenas acentuar o que já se encontra diluído em todos este âmbitos. É nesta medida que a prisão aparece ancorada no discurso do retreinamento para o convívio social, como ressocialização. E este é mais um paradoxo da tecnologia moderna de controle, a suposta perspectiva de reintegrar nasce em contradição, pois deve caminhar lado a lado com a exclusão, para ressocializar, isola, para reintegrar, prende. Mas isso não é feito assim deliberadamente, todo um saber é construído no sentido de produzir programas para o tratamento dos presos que espelha uma recodificação da existência e que corresponde a uma nova compreensão da vida em sociedade.

“Como a prisão não seria imediatamente aceita, pois se só o que ela faz, ao encarcerar, ao retreinar, ao tornar dócil, é reproduzir, podendo sempre acentuá-los um pouco, todos os mecanismos que encontramos já no corpo social? A prisão: um quartel um pouco estrito, uma escola sem indulgência, uma oficina sombria, mas, levando ao fundo, nada de qualitativamente diferente. Esse duplo fundamento – jurídico-econômico por um lado, técnico-disciplinar por outro – fez a prisão aparecer como a forma mais imediata e mais civilizada de todas as penas. E foi esse duplo funcionamento que lhe deu imediata solidez. Uma coisa, com efeito, é clara: a prisão não foi primeiro uma privação de liberdade a que se teria depois dado uma função técnica de correção; ela foi desde o início uma ‘detenção legal’ encarregada de um suplemento corretivo, ou ainda uma empresa de modificação dos indivíduos que a privação de liberdade permite fazer funcionar no sistema legal.” (FOUCAULT, 1975, p. 196)

 

Ao lado disso, é preciso dizer que a prisão não é jamais uma instituição inerte, na medida em que abre toda um gama de produção de saberes, desde a modernidade, ela é uma instituição dinâmica, em constante reforma, com a introdução de programas para assegurar seu próprio funcionamento. Se a sociedade moderna é uma sociedade disciplinar, as prisões, enquanto instituições totais são onidisciplinares, isto é, tomam a seu cargo todos os aspectos da vida de um indivíduo, condensando muitos dos aspectos constitutivos dos modos de dominação modernos. De certo modo, a prisão cumpre um papel corretivo quando a escola, o quartel e a fábrica não funcionaram na domesticação do indivíduo. Ela deve, portanto, ser mais austera nos princípios disciplinares já constitutivos destas instituições, como a disciplina, o comportamento cotidiano, a atitude moral, o treinamento físico. Ela é uma instituição total porque tem poder total sobre seus internos, não tem exterior nem lacunas, seus mecanismos de repressão e castigo são internos, nela, a disciplina é incessante, corresponde a toda a vida do indivíduo preso (refeições, sono, atividades laboriais), todas as atividades são lá dentro, todas ocorrem sob a tutela do Estado. Isso permitiria que disciplina fosse interiorizada. (Conf.: FOUCAULT, 1975, p.199)

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Foucault identifica três características básicas da prisão neste momento e no papel que ela cumpre junto ao desenvolvimento da tecnologia de poder disciplinar moderno. A primeira caracteristica diz respeito à necessidade do isolamento. Este também varia de instituição para instituição e corresponde a todo um saber produzido na identificação do indivíduo delinquente. De modo geral, o isolamento corresponde à perspectiva moral da prisão e à impossibilidade de associação dos presos, ela é reservada de modo mais radical, e durante toda a pena, àqueles considerados mais nocivos e inteligentes. No entanto, inicialmente, todos os presos devem passar por um período de isolamento, para tomar consciência de sua nova condição sob a tutela do Estado. Cumpre notar que este é um aspecto ainda adotado na nosso sistema prisional atualmente. O isolamento, tal como pensado pelo ideólogos do sistema prisional, deveria produzir o arrependimento, a culpabilização, o ódio de si mesmo, dos seus cúmplices e do seu crime. É uma perspectiva que corresponde à reclusão religiosa, devendo deixar o indivíduo só com sua consciência para se arrepender, só diante de um Estado que domina todos os aspectos da sua vida. O preso deve se sentir abandonado, totalmente sob o controle dos agentes penitenciários. Tal isolamento é a condição de uma submissão total, que permite o exercício de um poder despótico, não abalado por nenhuma influência externa, por nenhum companheirismo. O indivíduo deve se sentir sozinho, sem coletividade, para se adaptar à sua nova condição. Diante disso, a primeira palavra caridosa, a primeira concessão ao exercício de uma atividade laborativa, será sentida com uma imensa gratidão. Daí o enorme poder que a presença religiosa ou qualquer concessão posterior passa a ter na dominação do indivíduo que, retirado de seu meio e sem contato externo pode mesmo chegar a amar seu carrasco, desde que lhe resta apenas como possibilidade de comunicação (este aspecto tão fundamental de nossa existência) o diálogo vertical.

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O segundo princípio fundamental nas prisões corresponde ao valor fundamental nas sociedades pós-insdustriais conferido ao trabalho, à atividade produtiva. A ociosidade seria funesta, a falta de trabalho seria responsável pela geração do criminoso, por isso a atividade laborativa deveria acompanhar necessariamente a prisão e não poderia ser recusada. O trabalho não remunerado faria parte da pena como uma espécie de reparação: se o dinheiro mede o tempo, retirar o tempo laborativo do prisioneiro seria um forma de restituir o que ele teria retirado da sociedade inteira. Quando se tem apenas a sua força de trabalho, se não se vive dela, se está roubando o trabalho de outro. Então, a prisão deve ensinar a ser proletário, a se viver somente do seu trabalho, pois proletários só podem viver do seu trabalho (quem pode roubar o trabalho de outro é a burguesia). Os proletários não adaptados à sua condição devem ser obrigados a trabalhar para repôr o trabalho roubado. O tempo que mede o valor de troca, mede também sua dívida para com a sociedade na modernidade. O trabalho deveria então ser não-remunerado justamente para diferenciar operários e deliquentes e para jogar a classe proletária contra si mesma. Assim, a classe trabalhadora é ensinada também a odiar os deliquentes, a se diferenciar deles. A ideologia do trabalho faz o explorado ter orgulho de sua exploração a partir da exclusão radical daqueles que não serviriam nem para ser explorados pelo trabalho remunerado. A dominação pelo trabalho coloca assim um trabalho ainda mais rebaixado do que o outro, o trabalho que nem merece remuneração ainda que seja obrigatório. Não é fundamental que tal trabalho gere riqueza, embora seja desejável, o fundamental é que ele seja supostamente reeducativo, isto é, que produza indivíduos pacatos, adaptados e mecanizados segundo as normas de uma sociedade industrial que tem no trabalho o princípio de todo bem. É preciso que os presos aprendam a amar seu trabalho, como se ele fosse um privilégio que os colocasse novamente na condição de humanos, condição ameaçada a partir da supressão da sua liberdade. É preciso através da moral do trabalho produzir proletários dóceis. Trata-se de ajustá-los a uma forma econômica e ao modo de produção moderno, constituindo assim uma relação de poder e um esquema de submissão. Com isso, se impõe ao detento a moral do salário como condição da sua existência, é o modo de vida capitalista que deve ser aceito. O fundamental não é a suposta reintegração à sociedade, mas o modo de controle social que acompanha este discurso. Assim, como o dentento aprende a amar seu carcereiro através do isolamento, ele também pode aprender a amar sua exploração através do trabalho não remunerado.

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O tercei.ro princípio talvez seja o mais importante, pois diz respeito aos instrumentos de modulação das penas e a todos saberes que são produzidos para isso. A prisão moderna não é uma simples privação de liberdade, mas ela deve ser diferenciada, graduada em instensidade e objetivos que não se relacionam diretamente com o tipo de crime cometido, mas que variam de acordo com a produção de toda uma tipologia do deliquentes. Isso confere certa autonomia à instituição carcerária no que diz respeito ao poder judiciário, pois seus métodos de punição são internos e necessitam de informações produzidas não pelo julgamento, mas durante a aplicação da própria pena. Esta é também a diferença entre cadeia e penitenciária, a cadeia apenas prende, a peniteciária produz um saber que deve permitir “curar” o preso. Para isso, é necessário quantificar as penas, dar ao castigo a forma de uma recompensa/punição pelo comportamento. A punição se ajusta à transformação útil do detento. Esta é a origem do sistema de progressão de penas e do relaxamento de prisão, um mecanismo que, ainda que possa atualmente passar pelo judiciário, corresponde a um saber, sobretudo neste momento, fundamentalmente interno à própria instituição carcerária, saber este que dá origem à boa parte do que hoje se entende por criminologia. Deste ponto de vista, o que importaria seria o método de regenaração do condenado, não variando o rigor da punição em função da importância penal do ato do condenado. Haveriam fases, como já foi mencioando, da intimidação e isolamento, como o objetivo de quebrar o prisioneiro por dentro, passando pelo trabalho, visto então como um benefício ainda que não seja remunerado depois deste período de intimidação, chegando finalmente à moralização, que permitira mesmo ao detento estudar e gozar dos privilégios de um regime semi-abertos, desde que tenha “bom comportamento”. Sendo assim, ainda que o princípio da pena seja responsabilidade do poder judiciário, existe um saber-poder derramado pelas instituições no interior dos aparelhos de detenção que regula o regime de punições e recopensas não apenas como modo de manter e fazer cumprir regulamentos internos, mas como modo de tornar efetiva a ação da prisão sobre os detentos. É por isso que o Panopticon não é apenas uma arquitetura, é um sistema de saber-poder individualizante. É preciso haver uma ficha individual do prisioneiro na qual diretor prisional; sacerdotes e guardas escrevem suas observações. A constituição de um saber deve servir de princípio para a prática penitenciária. E é nessa medida que se pode distinguir também delinquente e infrator, estabelecendo também toda uma tipologia de deliquentes as exemplificamos sumariamente abaixo. (Conf.: FOUCAULT, 1975, p.212)

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INFRATOR

DELIQUENTE

ALGUÉM QUE PRATICOU ATOS CRIMINOSOS

TEM UM CARÁTER CRIMINOSO ANTES DE COMETER O CRIME QUE DEVE SER CONHECIDO

E DEVE SOFRER CASTIGO PENAL

DEVE-SE RECONSTITUIR SUA VIDA POR UM SABER QUE PERMITA ESTABELECER UMA TÉCNICA COERCIVA ADEQUADA

RESPONSÁVEL PELO ATO NA MEDIDA EM QUE POSSUI VONTADE LIVRE E CONSCIENTE

NÃO É APENAS AUTOR DO ATO, ESTÁ AMARRADO A ELE POR “FIOS COMPLEXOS”

PODER JUDICIÁRIO

APARELHO PENITENCIÁRIO

Com acesso à recursos intelectuais acima da média

Viciados, embrutecidos ou passivos

Incapazes

Se tornam perversos por tendências inatas ou por uma lógica perversa que os leva a uma perigosa apreciação dos deveres sociais.

Arrastados ao mal por indiferença, vergonha, covardia ou preguiça.

Levados ao crime por suas própria incapacidade.

Devem permanecer em isolamento dia e noite, inclusive no banho de sol, se for necessário contato com outros presos, aconselha-se usar máscaras de esgrima.

Precisam ser educados, isolamento de noite e trabalho em comum durante o dia. Conversas permitidas desde que em voz alta.

Devem viver em comum, estimulados às ocupações coletivas e submetidos à vigilância constante.

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Vemos assim que a privação da liberdade que deveria supostamente promover a transformação dos indivíduos possui em sua origem três esquemas básicos: o esquema moral do isolamento; o esquema econômico do trabalho e o esquema médico da cura ou normatização. A cada um deles corresponde a radicalização de princípios já presentes em outras instituições muito importantes na sociedade moderna: a escola, a fábrica, o hospital. Cada um deles demanda uma produção de saber-poder que é responsável pela própria consituição de seu objeto (no caso, o deliquente), como tal. Sendo assim, o sistema prisional cria o preso, cria o objeto de sua aplicação, na figura do delinquente, que precisa para ser justificável. Tais elementos reaparecem nas prisões que excedem a simples detenção e encarceramento justamente nas técnicas disciplinares que consitituem o que se chama ainda hoje de penitenciária.

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Este dispositivo de saber-poder é hoje na nossa sociedade uma grande insdústria, e um mecanismo necessário à manutenção de um sistema injusto e desigual. O número de novas prisões e o aumento da população carcerária serve para manter todo um mercado aquecido. Além disso, o sistema prisional se retroalimenta, cria e aperfeiçoa as próprias deliquências que supostamente pretenderia combater, cria e mantém o crime que precisa ser temido para justificar a manutenção da sua existência. É preciso que a população tenha medo e, junto com este pânico geral, as instituições repressivas e de controle social parecem plenamente justificadas. A política de encarceramento, a violência policial, os presídios superlotados servem à exclusão social e ao pânico constante que são dois grandes pilares da manutenção de um Estado cuja função principal é vigiar e punir para garantir os interesses da pequena parcela da população privilegiada com a exploração e opressão da maior parte da sociedade.

POR QUE NÃO VOTAR?

 

 

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Viemos de um ano no qual o povo tomou as ruas exigindo real participação política e colocando em questão o funcionamento deste grande teatro que é a nossa democracia representativa. O povo mostrou que não aguentava mais e não iria suportar pacatamente a violência, a exploração, opressão e privação de suas necessidades básicas. Os governos então reprimiram e criminalizaram, com o apoio da manipulação midiática, aqueles que protestaram.

Agora, mais uma eleição se aproxima. A sociedade na qual vivemos canaliza todo âmbito político das nossas vidas para um processo eleitoral comprometido de saída, para uma votação em uma sigla, que serve aos interesses dos grandes empresários e banqueiros que financiam o processo. São a estes financiadores que servem aqueles que se elegem, não importando quem ganhe as eleições. O processo eleitoral é hoje uma grande briga de corporações, e também mais um objeto de consumo da nossa sociedade de espetáculo. As pessoas vão lá e votam de dois em dois anos, e tentam nos convencer que isso faz com que vivamos em uma democracia. Sabemos que isso é obviamente falso, as pessoas votam mas quem elege são os interesses empresariais que financiam as campanhas para garantirem seus privilégios. O cidadão é apenas um consumidor de candidatos. Eleição é briga de corporações e lavagem de dinheiro. Não é este o meio que modifica a sociedade, este é o modo de encobrir e nos apartar dos reais modos de transformação, nos mantendo cúmplices pacatos da nossa própria exploração. Não se trata mais do que um teatro para parecer que somos nós quem decidimos isso, para que cooperemos na edificação de nossa própria prisão. Enquanto isso o povo pobre continua sendo massacrado nas favelas. O que o ano passado mostrou é que o verdadeiro poder do povo se exerce de outro modo, bem mais direto, que o que é capaz de transformar uma sociedade não se faz com voto, se faz na base, nas ruas, nas construções de poder popular diárias e na luta concreta por uma nova sociedade. Por isso é hoje crescente o número de pessoas que não pretendem votar e estas campanhas desesperadas do governo para evitar isso.

Muito se tem falado em ação direta nos últimos tempos. Mas, ao contrário do que afirma a grande mídia manipuladora, ação direta não é sinônimo de ação violenta em protestos, ação direta é quando o povo por suas próprias mãos age politicamente, é participação política real nos locais de trabalho e moradia, é educação popular nas favelas, é a construção de territórios autônomos, ocupações sem-teto, é quando o povo se organiza diretamente e constrói aquilo que almeja e luta nas ruas por seus interesses. O que o processo eleitoral visa é impedir e desqualificar o caráter políticos destas ações diretas. Enquanto gritamos ‘vem pras ruas’, isso modifica a realidade e constrói muito mais um mundo novo do que apertar botões para legitimar a eleição de quem quer que seja, dizem na TV ‘vem pra urna’, isto é, continuem não tomando parte diretamente na construção política da sociedade a qual pertencem, continuem legitimando o lucro que temos com a manuteção deste teatro. Por isso ao lado do sufrágio universal está a criminalização de nosso movimento, a criminalização daqueles que ousaram colocar toda esta farsa em questão e ameaçaram a funcionamento deste sistema. Não votar é também ação direta concreta, não é uma ação simbólica para dizer que nenhum político presta, é uma ação que não legitima o próprio processo eleitoral como ação política, que não legitima esta falsa democracia.

O que alguns ainda não sabem é que de fato não somos obrigados a votar, o equívoco em relação a este ponto também é bastante conveniente para aqueles que querem seu voto para legitimar suas mentiras. Não votar não faz ninguém perder direitos políticos, nem não poder tirar passaporte, nem deixar de receber salário ou não poder fazer concurso público. Não se trata de ter que justificar, todas as pessoas podem não votar e não justificar, basta pagar uma multa de R$ 3,50 na sua sessão eleitoral. É muito fácil, e barato, o preço de uma passagem de metrô. Basta não votar, e procurar durante o mês seguinte a sua sessão eleitoral. O funcionário responsável sequer pergunta a razão pela qual você deixou de votar. Com isso, você não legitima esta falsa democracia. Neste ano de eleições, o Brasil tem uma série de presos e perseguidos políticos justamente por não legitimarem esta farsa eleitoral. Todos têm a chance de dar uma resposta a este sistema e dar sentido a esta luta que é de todos nós. Não apareça para votar, a multa é ridícula e você não compactua com esta ditaduta na qual vivemos!

SE VOTAR MUDASSE ALGO, SERIA PROIBIDO!
ESTA TAMBÉM É UM CAMPANHA DA FRENTE INDEPENDENTE POPULAR!

Matéria Sobre a Censura que Estou Sofrendo

images.duckduckgo.comLink da matéria:

http://www.progresso.com.br/dia-a-dia/justica-proibe-ativista-de-vir-a-dourados

Justiça proibe ativista de vir a Dourados

Camila Jourdan participaria de evento que acontece na UFGD, no entanto, a viagem da docente foi proibida

Censura. É assim que a professora Camila Jourdan, doutora em Filosofia e coordenadora de pós-graduação na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), define a decisão judicial que a impediu de viajar ao Mato Grosso do Sul para participar de um evento da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), onde seria uma das palestrantes.

Na próxima sexta-feira, a docente ingressaria no “IV Encontro de Integração: Dias de História”, palestrando sobre o tema “Jornadas de Junho, Perseguições Políticas e Anarquismo Hoje”. Na oportunidade, ela relataria as experiências que teve ao longo de sua carreira acadêmica e de suas ações como ativista, incluindo todo o processo que acarretou em sua prisão.

Durante a Copa do Mundo no Brasil ela acabou detida com outros ativistas por protestos contra os gastos do Governo Federal com o Mundial. Ela conseguiu habeas corpus e vai responder pelo processo em liberdade. Em uma publicação no Facebook, Jourdan relatou que a justiça a proibiu de viajar por considerar que “a atividade de dar palestras não é essencial ao exercício de sua atividade profissional”. “Como assim?”, questionou.

Ela alega estar sendo alvo de censura. “Mais um absurdo sem precedentes. Acabo de ser censurada. […] O que a sociedade tem a dizer sobre isso? Esta censura precisa ser denunciada! Peço a todos que denunciem isso em todos os meios que tiverem acesso. Querem nos calar!”.

Confira a postagem completa da professora

“Mais um absurdo sem precedentes. Acabo de ser censurada. O juiz responsável pelo caso indeferiu meu pedido de ir a Dourados-MS, dar uma palestra no IV Encontro de Integração: Dias de História, na UFGD. A justificativa do magistrado é que a atividade de dar palestras não é essencial ao exercício da minha atividade profissional. Como assim?!? Eu sou uma professora universitária, o programa de pós-graduação em Filosofia da UERJ é avaliado inclusive levando em conta minha produtividade acadêmica…Além disso, houve financiamento público para possibilitar minha ida, a decisão do juíz, dois dias antes da palestra, com hospedagem paga, passagem, refeições, gera prejuízo ao dinheiro público. O que a sociedade tem a dizer sobre isso? Esta censura precisa ser denunciada! Peço a todos que denunciem isso em todos os meios que tiverem acesso.

NOTA SOBRE A CONDENAÇÃO DE RAFAEL BRAGA

            rafaelbraga

        Todo poder emana do povo, para o povo e pelo povo, devendo sempre ao povo retornar. Se o Estado se volta contra seu povo, este povo tem o direito inalienável de destituir este Estado, usando para isso todos os meios que estiverem à sua disposição. Assim, as sociedades democráticas nascem legitimando a possibilidade da revolução popular sempre que o ‘pacto social’, pelo qual supostamente o povo transfere seu poder ao Estado, for rompido e o Estado não corresponder aos anseios da vontade coletiva. As sociedades democráticas fazem isso porque surgiram de uma revolução e nada melhor do que legitimar a sua própria origem, lembrando sempre que foi sobre o sangue das cabeças decepadas dos nobres que se pôde impôr, senão como realidade, ao menos como valores, ‘a igualdade, a fraternidade e a liberdade’. Que depois disso tudo, uma elite tenha continuado detendo os meios do Estado para a manutenção de seus privilégios, opondo assim claramente Estado e sociedade, não pode esconder a origem histórica revolucionária das chamadas ‘democracias modernas’. Não que se queira dizer com isso que os ares desta revolução tenham realmente algum dia chegado por aqui. Mas se, ainda hoje, menos de dez por cento da população retém os meios de produção, as propriedades e o lucro sobre o que é produzido, como falar em democracia sem sentir vergonha? Como fingir não ver que é sobretudo o poder do povo o que o Estado que representa os interesses da elite econômica pretende evitar?

        Hoje, quando milhares são executados, retirados de suas casas, torturados nas favelas, para a manutenção do lucro de alguns e da concentração de capital; hoje, após o povo ter ido às ruas exigindo poder para o povo (isto é, exigindo o que lhe seria supostamente um direto), quem parmanece encarcerado? A condenação de Rafael Braga ontem é mais um capítulo da guerra do Estado contra seu povo, contra aqueles que o sistema capitalista, extremamente violento, diga-se de passagem, decidiu que devem morrer para que o poder permaneça de alguns poucos. É um capítulo da reação ao que significou junho do ano passado, um capítulo com uma mensagem clara: poder para o povo não haverá.

            Não há dúvida de que jamais houve democracia real, de que a maior parte da população, negra e pobre, vive sob a opressão da violência do Estado, da intervenção militar, dos grupos de extermínio, da milícia, da arbitrariedade da instituição absolutista que é a polícia (que se auto-legisla, julga e executa). No período da ditadura militar, a tortura e a violência policial foram “democratizadas” com a chamada ‘classe média’, isso deu visibilidade à violência do Estado. Mas quando a supressão de direitos volta a ficar restrita às camadas excluídas, finge-se que ela não existe. Hoje, quando a violência do Estado atinge às elites ou à chamada classe média, chama-se ‘estado de exceção’. Mas esta não é, nem jamais foi, a exceção nas favelas. Nós não lutamos contra a suposta exceção, nós pretendemos combater a regra, isto é, este sistema falsamente democrático. O Estado se recrudesce, mostra sua cara e se volta mesmo contra as camadas incluídas da população sempre que estas apóiam a luta dos excluídos, lutam ao lado destes e denunciam a violência contra eles. O Estado sempre estará pronto para punir exemplarmente quando este for o caso. Mas o importante é que permaneça um silêncio conivente da maior parte da sociedade ao terrorismo imposto pelos agentes estatais e do poder econômico que estes representam às camadas excluídas. É extremamente sintomático desta situação e expressivo desta sociedade que vivemos que, quando o povo foi às ruas exigindo poder ao povo, quem tenha permanecido primeiro preso e condenado seja negro, pobre e morador de rua. É a resposta punitiva que o Estado quer dar, ressaltando que, aconteça o que acontecer, o Estado e o poder permanecerão nas mãos das elites e não do povo.

         Nós estamos sendo criminalizados por defender o poder do povo. Sim, nós fomos perseguidos, presos, estamos impedidos de nos manifestar e talvez sejamos condenados, esta é a exceção. Toda sorte de arbitrariedade e manipulação foi usada contra nós para que isso fosse possível. Mas existem muitos a quem a voz é permanentemente negada de muito modos. Que quem permaneça encarcerado seja hoje um morador de rua é a regra, quando o que se pretende evitar antes de tudo é o poder do povo. Nós lutamos pela igualdade, em princípio, sabendo da desigualdade que há, de fato. Para que nossa luta não signifique tão somente nossa criminalização, nosso próprio silenciamento e banimento, é preciso que ela seja também a luta da sociedade em geral. Todos que permanecem em silêncio diante da condenação absurda de Rafael Braga, que não se mobilizam (mesmo sem medida restritiva que impeça a participação em manifestações), que se mantém sentados em seus privilégios, são cúmplices da reação à junho, cúmplices da guerra do Estado contra seu povo, cúmplices da manutenção do encarceramento de Rafael Braga e do extermínio de outrxs tantxs invisibilizadxs pelo sistema. Quem reconhece este Estado como democrático, esta falsa ordem como intocável, contribui para a manutenção desta sociedade injusta, desigual e excludente.

ANARQUISMO E TEMPO PRESENTE – A contribuição de Michel Foucault

 

Texto base usado na aula dada no Curso de Extensão de Teoria Política Anarquista e Libertária, realizado na UFRJ (em pdf):

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Slides usados nesta mesma aula (em pdf):

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ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A NATURALIZAÇÃO DAS OPRESSÕES SISTÊMICAS

revolta black panters

Eu gostaria de dizer algumas palavras sobre o inatismo. A ideia muito difundida pela qual alguns são (essencialmente ou milagrosamente) bons e outros são (essencialmente ou milagrosamente) maus. Deve-se esconder, escamotear todas as desigualdades sistêmicas e socialmente situadas, por meio desta ideologia, deve parecer que nascemos todos agora. Iguais perante a lei que supostamente bóia no vazio, iguais perante um deus que, só por acaso, é a imagem e semelhança desta lei e do Estado que a mantém. O inatismo aparece assim mais ou menos nos seguintes termos: existem homens que são bons em termos de caráter, e outros que não, tal como existem bons burgueses, bons brancos, etc…Da mesma forma, existem mulheres que não prestam, negros que são tão ruins quanto alguns brancos e reproduzem racismo, proletários que não valem nada. O interessante é que, se o opressor se convence desta ideia, ele pode dormir com a consciência tranquila e continuar mantendo seus privilégios como se eles fossem igualmente dados naturais e necessários para toda a humanidade. O tanto que se gasta em cultura de massa para difundir esta concepção, o quanto ela é fundamental para a manutenção das opressões e para o apaziguamento das desigualdades estruturais de uma sociedade é impressionante. É preciso que pareça que o mundo é dividido entre vilões e mocinhos, tal como a novela das oito, e que a classe proletária ou os negros ou as mulheres ou os gays não só podem fazer, como, mesmo, de quando em quando, fazem as mesmas atrocidades que condenam com seus opressores. Apenas coincidentemente os mocinhos têm sempre a cara do homem branco hetero e cis. Apenas por uma naturalidade divina, um acaso, ele normalmente se encaixa tão bem no mito patriarcal. É claro que o mocinho da novela será, no geral, hetero e branco, mas é por acaso, pois pode aparecer um negro que reproduza seu padrão, um gay que reproduza seu padrão. Este padrão deve parecer natural, não deve jamais soar como sociocultural, ele deve ultrapassar todas as
diferenças superficiais, ele pode mesmo romper a barreira da espécie (penso no mais novo filme da série ‘o planeta dos macacos’) e mostrar-se necessário. Tudo isso deve provar, afinal, que ele deriva de deus, ou de aspectos muito gerais da biologia. Em todo caso, deve parecer imutável. Ora, se somos naturalmente divididos entre bons e maus, que diferença faria qualquer revolução? Apenas se mudariam os opressores pontualmente, mas a humanidade estaria condenada de saída “ao céu” ou “ao inferno” e toda luta seria vã. Por isso, e é isso que esta ideologia espera propagar como conclusão, não faz sentido lutar ou se revoltar. Isso não significa negar totalmente a liberdade. Alguns podem mudar do céu para o inferno no meio do caminho, tal como podem, “se arrepender” e merecer o céu. Mas isso não importa tanto, importa haver sentido em existir um céu e um inferno, os quais devem ser merecidos pela conduta do indivíduo. Deve, claro, haver uma
liberdade de escolha relativa, jamais uma liberdade ontológica como propôs o existencialismo, mas uma liberdade condicionada pela “índole imutável do indivíduo”, e esta suposta índole, a alma para os religiosos, previamente dada às ações do ser humano no mundo, não pode ser também tomada como socialmente situada, os aspectos estruturais da sociedade devem sempre ser escondidos por ela, devem parecer secundários ao esforço pessoal; ao mérito individual e ao biológico, claro, pois aspectos genéticos tomados como simples dados aparentemente justificam desigualdades de modo senão justo, ao menos certamente natural e inelutável. Toda esta ideologia é importante
também porque, com isso, naturaliza não apenas o bem, mas, junto com ele, o mal. Parece que é simplesmente uma coisa humana, sempre haverão aqueles que cometerão tais atrocidades, o sistema político e a organização social não têm nada com isso. Se não fôssemos tão bombardeados com esta ideia por todos os meios desde que nascemos, penso mesmo que esta sociedade na qual vivemos não se sustentaria com todas as suas contradições por muito tempo. É preciso também convencer bem que aqueles que resistem às opressões, aqueles que se voltam contra ela, que não a aceitam ou a naturalizam, são justamente aqueles maus dos quais falávamos, aqueles prontos a reproduzir o
que condenam, e, até por isso, estão tomando tais atitudes de resistência. Sobre isso, exemplos atuais não nos faltam: o manifestante vândalo; o Hamas; a feminista…Situações completamente distintas, mas com um e mesmo tipo de discurso, que culpabiliza sempre aqueles que resistem pela opressão que sofrem, exatamente no momento em que se levantam, e que pretende esconder todas as diferenças estruturais e mutáveis de nossa sociedade sob o véu de uma igualdade natural forjada sobre esta própria desigualdade.

X Seminário de Graduação em Filosofia da UFRJ: A Filosofia e as Jornadas de Junho

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Amanhã estarei fazendo parte da mesa de encerramento deste seminário no IFCS, às 14 horas.

https://www.facebook.com/events/229665077228218/

http://seminariofilosofiaifcs.blogspot.com.br/

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O X Seminário de Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro é um evento feito para os alunos das mais diversas graduações que tenham interesse em discutir as Jornadas de Junho, tanto na qualidade de expositores, quanto na de ouvintes, a partir de um enviesamento minimamente filosófico. Nesse sentido, os organizadores do seminário tem em mente não só o diálogo de várias áreas da filosofia entre si, como também o da filosofia com os demais campos do conhecimento, no movimento de interpretar acontecimentos cujo impacto ainda se faz sentir, mesmo passado quase um ano. São bem vindos os alunos de qualquer curso da UFRJ, bem como os de qualquer outra das instituições do resto país, a se apresentarem e participarem das subsequentes discussões.

E-mail: seminariofilosofiaifcs@gmail.com
Blog: http://seminariofilosofiaifcs.blogspot.com.br/
Página no facebook: https://www.facebook.com/seminariofilosofiaufrj

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Programação

As mesas acontecerão sempre às 14h na sala Celso Lemos do IFCS .

04/08 -Segunda-feira – Mesa de abertura

Bruno Bahia (CP2-Realengo)
Carla Francalancci (UFRJ)
Rodrigo Nunes (PUC-Rio)

05/08 – Terça-feira

O papel do intelectual na vida política
Juliana de Albuquerque Barreto (UERJ)

Ensaio sobre o novo
Gleyson Dias de Oliveira (UFRJ )

Um olhar libertário sobre alguns postulados que emergiram no Brasil das
Jornadas de Junho
Eduardo Macedo (UERJ)

A Concepção de Milton Friedman: “Não existe almoço grátis.”
Úrsula Secron de Aquino Rodrigues (UFRJ)

06/08 – Quarta-feira

Racismo e Sociedade no encontro das Mobilizações de Junho no RJ
Vitor Manoel Canuto Fernandes (UERJ)

Jornadas de Junho e a crise da democracia representativa no Brasil
José Anderson dos Santos Bezerra (UFRN)

O estado enquanto violador de direitos
Gustavo Bertolino Ferreira (UNICAMP)

Movimento de cada dia
Carlos Vinicius F Bezerra (UFRJ)

07/08 – Quinta-feira

Força de lei & os corpos [in]dóceis das Jornadas de Junho de 2013 – uma análise sobre lei e justiça à luz de Jacques Derrida
Josefina Neves Mello (UFRJ)

A Herança de Hannah Arendt
Margareth Bravo (UFRJ)

Simbologia das manifestações: ritual e corpo profano
Lucas Rodrigues de Souza (UFF) e Felipe de Oliveira Pinto (UFF)

08/08 – Sexta-feira – Mesa de encerramento

Camila Jourdan (UERJ)
Ulysses Pinheiro (UFRJ)
Germano Nogueira Prado (CP2-Humaitá)

Para se inscrever como ouvinte, acesse: http://seminariofilosofiaifcs.blogspot.com.br/2014/03/envie-seu-trabalho.html

Lógica para quem precisa…

 

 

reinaldorecalcado

Eu não pretendo responder diretamente a réplica de RA à resposta de sua postagem , pois não existe ali de fato nenhum argumento, mas uma grande falácia ad hominem (ou “ad mulherem”), que não merece ser considerada nem reproduzida. Mas é claro que aquilo deve servir para alguma coisa, penso em uma aula de lógica, e também um pouco de semântica, para alguém que de fato esteja interessado em aprender sobre argumentação ou filosofia da linguagem. Como a maior parte dos usos de falácias em nossa vida concreta não se deve a uma fraqueza da razão, mas da vontade, e também estou certa que este seja o caso em questão, vou dirigir esta resposta aos que estudam comigo, ao meus alunos e colegas.

Primeiramente, eu gostaria de salientar que a Lógica não é um conhecimento ultrapassado, boa parte do conhecimento lógico com o qual se trabalha hoje teve seu desenvolvimento a partir do início do século XX, isso inclui toda a matéria contida naquela avaliação divulgada (Cálculo Proposicional e Cálculo dos Predicados de Primeira ordem), que inclusive é a base da linguagem de programação dos computadores que agora usamos, incluindo necessariamente o que o próprio RA usa, embora ele não tenha qualquer ideia disso. Existem muitas razões para se estudar lógica atualmente, mesmo. Tentar desqualificar uma avaliação de uma professora perseguida politicamente é, sem dúvida, a menor delas. Até por isso RA não precisaria se dar ao trabalho, poderia ter consultado alguém mais capacitado do que ele sobre o tema antes de escrever tanta bobagem.

Outro ponto importante é a referência à sexualidade da mulher, evidentemente RA não consegue se imaginar discutindo com uma mulher sem colocar em pauta a sexualidade dela como forma de desqualificação. Esta é uma estratégia retórica que a sociedade machista ensinou muito bem a RA e da qual ele não pretende abrir mão, seja direta ou indiretamente, sempre que precisar, como fazem sucessivamente os privilegiados com seus privilégio quando assim precisam. Mencionar a minha sexualidade tem um efeito psicológico imediato na sua audiência e interlocução, que aprendeu a menosprezar as mulheres por isso. Além disso, faz parecer que eu manipulo deste modo meus alunos, então já na posição de ingênuos seduzidos manipulados, uma imagem muito cara à mitologia patriarcal acerca do feminino e que, como eu salientei em uma postagem recente, tal sociedade não cessa de requentar sempre que tem necessidade. Obviamente não há qualquer argumento em tal comentário, o efeito é psicológico, lembrar que eu tenho sexualidade, deveria me colocar imediatamente abaixo dele em algum sentido. Infelizmente, é o tipo de estratégia que funciona, mesmo após desmacarada. Aparece também quando ele faz questão de me chamar de ‘moça’, mesmo este não sendo o caso, ou de me coisificar, o que deveria me colocar em um lugar subalterno, menor ao dele perante seus leitores. Eu gostaria de apelar aqui às experiências de outras mulheres sobre o caso, é impossível ser mulher em nossa sociedade e nunca ter passado por situações similares, homens, no geral, não suportam debater de igual pra igual com uma mulher e apelam sempre para modos mais ou menos sutis de minorizá-las. Mas não quero me alongar neste ponto, acho que já disse o suficiente, e há também grande bibliografia sobre o fenômeno, caso alguém se interesse em aprofundar o assunto. Ressalto apenas, adicionalmente, que, no momento em que vivemos hoje, isso aparece diariamente no tratamento do caso, basta ver como a mídia foca na Elisa e em mim, e nos termos que usa para isso quando se refere a uma de nós.

Passemos à referência que RA faz ao meu exemplo do Irving Copi. Ora, é evidente que quando eu ressalto que um dos mais usados manuais de Lógica possui exemplos atrelados a uma posição política do contexto no qual foi escrito eu não pretendo, com isso, defender a posição oposta, isto é, não estou defendendo a URSS. Também não pretendo dizer que Copi não deveria fazer isso. Esta, de fato, deveria ser a posição de RA, para ser coerente. Estou apenas mostrando como exemplos de formalização que fazem referência às posições políticas de seus autores apenas incomodam seletivamente, isto é, dependendo da posição defendida, o que é claramente um problema ideológico e que pode culminar em perseguição política e supressão da liberdade de expressão e da autonomia no trabalho de um professor. Repetindo: meu ponto no exemplo não é tomar posição na ultrapassada querela da Guerra Fria. É salientar como isso é recorrente no estudo da Lógica e, em grande medida, no estudo do que quer que seja. Para ser coerente com sua posição, RA precisaria condenar Copi independentemente da posição manifestada por ele nos exemplos de formalização que usa. Mas RA não faz isso, ele aproveita para se posicionar sobre a questão, ou seja, confunde o foco propositalmente para parecer que eu defendo algo que não defendi (a URSS) e acaba comprovando que sua defesa da neutralidade é realmente seletiva. Não me importo nem um pouco aqui se RA faz isso propositalmente, se ele é simplesmente estúpido ou oportunista, se é uma simples falácia ou um sofisma descarado. Escrevo isso aqui para as pessoas que podem ter sido engadas pela falácia que ele utiliza.

Meus alunos sabem que trato de lógica e não de anarquismo em sala de aula, jamais fiz isso na disciplina em questão. Não vejo problema algum, entretanto, que um professor se posicione em sala sobre as questões políticas da sociedade em que vive, pelo contrário, acho que isso é mesmo imperativo na educação, seria irresponsável e anti-ético ocupar uma posição como a que ocupo e se calar diante das injustiças da sociedade na qual vivemos. Disto, lamento pelos incomodados, mas não vou me furtar. Outra coisa totalmente diferente é aquilo de que fui acusada, isto é, de perseguir um aluno por isso ou colocar uma questão na prova que dependesse da posição política dele para ser acertada. Este não é nem de longe o caso da questão de formalização citada que, justamente por ser uma questão de formalização, não trata do conteúdo. Nestes anos que dou aula na UERJ jamais reprovei alguém por questões ideológicas ou posicionamentos políticos. Inclusive, alunos com posicionamentos manifestamente opostos aos que defendo publicamente gabaritaram minha última avaliação e jamais, jamais mesmo, me passou pela cabeça misturar estas questões. Faço isso por ética profissional própria e não por defender a meritoricracia, que fique bem claro.

Quanto ao uso indevido de dinheiro público, não creio que ele está na pouca parcela dedicada à educação na nossa sociedade. Deveria incomodar o uso deste dinheiro feito em detenções para menores, que torturam diariamente seus internos, como foi recentemente denunciado; na política de segurança genocida; na polícia que mata o povo pobre diariamente na favela. Estranho alguém se incomodar com minha prova de lógica quando sai no jornal denúncias de estupros e execuções sumárias dos excluídos pelos agentes do Estado.

Por fim, o mais importante: não existe conteúdo semântico neutro. E não existe exercício de formalização que não contenha semântica. Por isso, não tenho qualquer compromisso com exemplos neutros. A neutralidade é um demanda dos privilegiados para manterem seus posicionamentos como “a verdadeira realidade”. A ideologia dominante toma-se como verdade neutra, esta é uma estratégia que faz parte da própria dominação. Eu me vinculo a uma escola de pensamento que considera toda semiótica como necessariamente ideológica, na medida em que é social, de tal modo que não há mesmo como não me posicionar de alguma maneira nos exemplos usados para formalização. Sobre isso, termino com uma citação de Bakhtin que gosto muito: “Os signos também são objetos naturais, específicos, e todo produto natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir, assim, um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades. Um signo não apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. (…) O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico.” (1929, p.18)