Lógica para quem precisa…

 

 

reinaldorecalcado

Eu não pretendo responder diretamente a réplica de RA à resposta de sua postagem , pois não existe ali de fato nenhum argumento, mas uma grande falácia ad hominem (ou “ad mulherem”), que não merece ser considerada nem reproduzida. Mas é claro que aquilo deve servir para alguma coisa, penso em uma aula de lógica, e também um pouco de semântica, para alguém que de fato esteja interessado em aprender sobre argumentação ou filosofia da linguagem. Como a maior parte dos usos de falácias em nossa vida concreta não se deve a uma fraqueza da razão, mas da vontade, e também estou certa que este seja o caso em questão, vou dirigir esta resposta aos que estudam comigo, ao meus alunos e colegas.

Primeiramente, eu gostaria de salientar que a Lógica não é um conhecimento ultrapassado, boa parte do conhecimento lógico com o qual se trabalha hoje teve seu desenvolvimento a partir do início do século XX, isso inclui toda a matéria contida naquela avaliação divulgada (Cálculo Proposicional e Cálculo dos Predicados de Primeira ordem), que inclusive é a base da linguagem de programação dos computadores que agora usamos, incluindo necessariamente o que o próprio RA usa, embora ele não tenha qualquer ideia disso. Existem muitas razões para se estudar lógica atualmente, mesmo. Tentar desqualificar uma avaliação de uma professora perseguida politicamente é, sem dúvida, a menor delas. Até por isso RA não precisaria se dar ao trabalho, poderia ter consultado alguém mais capacitado do que ele sobre o tema antes de escrever tanta bobagem.

Outro ponto importante é a referência à sexualidade da mulher, evidentemente RA não consegue se imaginar discutindo com uma mulher sem colocar em pauta a sexualidade dela como forma de desqualificação. Esta é uma estratégia retórica que a sociedade machista ensinou muito bem a RA e da qual ele não pretende abrir mão, seja direta ou indiretamente, sempre que precisar, como fazem sucessivamente os privilegiados com seus privilégio quando assim precisam. Mencionar a minha sexualidade tem um efeito psicológico imediato na sua audiência e interlocução, que aprendeu a menosprezar as mulheres por isso. Além disso, faz parecer que eu manipulo deste modo meus alunos, então já na posição de ingênuos seduzidos manipulados, uma imagem muito cara à mitologia patriarcal acerca do feminino e que, como eu salientei em uma postagem recente, tal sociedade não cessa de requentar sempre que tem necessidade. Obviamente não há qualquer argumento em tal comentário, o efeito é psicológico, lembrar que eu tenho sexualidade, deveria me colocar imediatamente abaixo dele em algum sentido. Infelizmente, é o tipo de estratégia que funciona, mesmo após desmacarada. Aparece também quando ele faz questão de me chamar de ‘moça’, mesmo este não sendo o caso, ou de me coisificar, o que deveria me colocar em um lugar subalterno, menor ao dele perante seus leitores. Eu gostaria de apelar aqui às experiências de outras mulheres sobre o caso, é impossível ser mulher em nossa sociedade e nunca ter passado por situações similares, homens, no geral, não suportam debater de igual pra igual com uma mulher e apelam sempre para modos mais ou menos sutis de minorizá-las. Mas não quero me alongar neste ponto, acho que já disse o suficiente, e há também grande bibliografia sobre o fenômeno, caso alguém se interesse em aprofundar o assunto. Ressalto apenas, adicionalmente, que, no momento em que vivemos hoje, isso aparece diariamente no tratamento do caso, basta ver como a mídia foca na Elisa e em mim, e nos termos que usa para isso quando se refere a uma de nós.

Passemos à referência que RA faz ao meu exemplo do Irving Copi. Ora, é evidente que quando eu ressalto que um dos mais usados manuais de Lógica possui exemplos atrelados a uma posição política do contexto no qual foi escrito eu não pretendo, com isso, defender a posição oposta, isto é, não estou defendendo a URSS. Também não pretendo dizer que Copi não deveria fazer isso. Esta, de fato, deveria ser a posição de RA, para ser coerente. Estou apenas mostrando como exemplos de formalização que fazem referência às posições políticas de seus autores apenas incomodam seletivamente, isto é, dependendo da posição defendida, o que é claramente um problema ideológico e que pode culminar em perseguição política e supressão da liberdade de expressão e da autonomia no trabalho de um professor. Repetindo: meu ponto no exemplo não é tomar posição na ultrapassada querela da Guerra Fria. É salientar como isso é recorrente no estudo da Lógica e, em grande medida, no estudo do que quer que seja. Para ser coerente com sua posição, RA precisaria condenar Copi independentemente da posição manifestada por ele nos exemplos de formalização que usa. Mas RA não faz isso, ele aproveita para se posicionar sobre a questão, ou seja, confunde o foco propositalmente para parecer que eu defendo algo que não defendi (a URSS) e acaba comprovando que sua defesa da neutralidade é realmente seletiva. Não me importo nem um pouco aqui se RA faz isso propositalmente, se ele é simplesmente estúpido ou oportunista, se é uma simples falácia ou um sofisma descarado. Escrevo isso aqui para as pessoas que podem ter sido engadas pela falácia que ele utiliza.

Meus alunos sabem que trato de lógica e não de anarquismo em sala de aula, jamais fiz isso na disciplina em questão. Não vejo problema algum, entretanto, que um professor se posicione em sala sobre as questões políticas da sociedade em que vive, pelo contrário, acho que isso é mesmo imperativo na educação, seria irresponsável e anti-ético ocupar uma posição como a que ocupo e se calar diante das injustiças da sociedade na qual vivemos. Disto, lamento pelos incomodados, mas não vou me furtar. Outra coisa totalmente diferente é aquilo de que fui acusada, isto é, de perseguir um aluno por isso ou colocar uma questão na prova que dependesse da posição política dele para ser acertada. Este não é nem de longe o caso da questão de formalização citada que, justamente por ser uma questão de formalização, não trata do conteúdo. Nestes anos que dou aula na UERJ jamais reprovei alguém por questões ideológicas ou posicionamentos políticos. Inclusive, alunos com posicionamentos manifestamente opostos aos que defendo publicamente gabaritaram minha última avaliação e jamais, jamais mesmo, me passou pela cabeça misturar estas questões. Faço isso por ética profissional própria e não por defender a meritoricracia, que fique bem claro.

Quanto ao uso indevido de dinheiro público, não creio que ele está na pouca parcela dedicada à educação na nossa sociedade. Deveria incomodar o uso deste dinheiro feito em detenções para menores, que torturam diariamente seus internos, como foi recentemente denunciado; na política de segurança genocida; na polícia que mata o povo pobre diariamente na favela. Estranho alguém se incomodar com minha prova de lógica quando sai no jornal denúncias de estupros e execuções sumárias dos excluídos pelos agentes do Estado.

Por fim, o mais importante: não existe conteúdo semântico neutro. E não existe exercício de formalização que não contenha semântica. Por isso, não tenho qualquer compromisso com exemplos neutros. A neutralidade é um demanda dos privilegiados para manterem seus posicionamentos como “a verdadeira realidade”. A ideologia dominante toma-se como verdade neutra, esta é uma estratégia que faz parte da própria dominação. Eu me vinculo a uma escola de pensamento que considera toda semiótica como necessariamente ideológica, na medida em que é social, de tal modo que não há mesmo como não me posicionar de alguma maneira nos exemplos usados para formalização. Sobre isso, termino com uma citação de Bakhtin que gosto muito: “Os signos também são objetos naturais, específicos, e todo produto natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir, assim, um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades. Um signo não apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. (…) O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico.” (1929, p.18)

6 responses to “Lógica para quem precisa…”

  1. Luiz Brasileiro

    Camila, gostei muito do texto e irei compartilhar. Dou-lhe como sugestão para edição que dê um ou dois espaços entre um parágrafo e outro pois assim a página fica mais arejada e facilita a leitura.

  2. Hélio Araújo Silva

    #PROSTESTAR NÃO É CRIME OU É?
    E LIBERDADE DE EXPRESSÃO?
    O povo brasileiro não merece os políticos que temos…
    Black Blocs é esquerda do Brasil

  3. Juliana

    Camila, se serve vale de algo, segue apoio!
    Infelizmente, nem todos conseguem manter um padrão de discussão sem rebuscar ou baixar o nível. O referido, obviamente, não deu conta. Mais infelizmente ainda é ler os comentários postados favoravelmente ao sujeito no qual não há qualquer referência satisfatória ao conteúdo em questão, ou seja, todos fazem apologia ao sujeito sem tratarem do conteúdo. Assustador, no entanto, é descobrir que é um dos blogs mais lidos e entendo, com isso, que é formador de opinião.
    Definitivamente, precisamos de mais vozes independentes! Ainda que não concorde, mas simpatize, com o anarquismo. Vamos em frente!

  4. Hare Brasil

    Muito bom o texto!

  5. Ana Paula

    Delicioso ver uma mulher sapateando na cabeça de um homem boçal desse jeito. <3

  6. Eduardo Ochs

    Eu postei o comentário abaixo na página do RA – onde duvido que alguém vá vê-lo – e em outros lugares…:

    Oi Camila (e outros!)
    Eu sou doutor em Lógica – mais precisamente em Semântica Categórica – mas tenho ensinado principalmente Geometria Analítica, na UFF de Rio das Ostras… adorei a sua prova, não só pelo conteúdo formal dela como por um truque que achei genial, que é o seguinte. É muito comum os alunos quererem, e precisarem, conversar sobre algo grave que está acontecendo fora da aula, e a gente só conseguir conversar um pouquinho sobre essas coisas externas na aula sem atrapalhar o conteúdo do curso…

    A sua questão 2 permite que os alunos facam a prova tratando cada um dos termos – coxinha, infiltrado, etc – como algo abstrato durante a prova, e cria espaco pra que eles conversem e facam brincadeiras sobre tudo isso depois, com cada um podendo fazer os juízos de valor que quiser… Brilhante! =)