Eu gostaria de dizer algumas palavras sobre o inatismo. A ideia muito difundida pela qual alguns são (essencialmente ou milagrosamente) bons e outros são (essencialmente ou milagrosamente) maus. Deve-se esconder, escamotear todas as desigualdades sistêmicas e socialmente situadas, por meio desta ideologia, deve parecer que nascemos todos agora. Iguais perante a lei que supostamente bóia no vazio, iguais perante um deus que, só por acaso, é a imagem e semelhança desta lei e do Estado que a mantém. O inatismo aparece assim mais ou menos nos seguintes termos: existem homens que são bons em termos de caráter, e outros que não, tal como existem bons burgueses, bons brancos, etc…Da mesma forma, existem mulheres que não prestam, negros que são tão ruins quanto alguns brancos e reproduzem racismo, proletários que não valem nada. O interessante é que, se o opressor se convence desta ideia, ele pode dormir com a consciência tranquila e continuar mantendo seus privilégios como se eles fossem igualmente dados naturais e necessários para toda a humanidade. O tanto que se gasta em cultura de massa para difundir esta concepção, o quanto ela é fundamental para a manutenção das opressões e para o apaziguamento das desigualdades estruturais de uma sociedade é impressionante. É preciso que pareça que o mundo é dividido entre vilões e mocinhos, tal como a novela das oito, e que a classe proletária ou os negros ou as mulheres ou os gays não só podem fazer, como, mesmo, de quando em quando, fazem as mesmas atrocidades que condenam com seus opressores. Apenas coincidentemente os mocinhos têm sempre a cara do homem branco hetero e cis. Apenas por uma naturalidade divina, um acaso, ele normalmente se encaixa tão bem no mito patriarcal. É claro que o mocinho da novela será, no geral, hetero e branco, mas é por acaso, pois pode aparecer um negro que reproduza seu padrão, um gay que reproduza seu padrão. Este padrão deve parecer natural, não deve jamais soar como sociocultural, ele deve ultrapassar todas as
diferenças superficiais, ele pode mesmo romper a barreira da espécie (penso no mais novo filme da série ‘o planeta dos macacos’) e mostrar-se necessário. Tudo isso deve provar, afinal, que ele deriva de deus, ou de aspectos muito gerais da biologia. Em todo caso, deve parecer imutável. Ora, se somos naturalmente divididos entre bons e maus, que diferença faria qualquer revolução? Apenas se mudariam os opressores pontualmente, mas a humanidade estaria condenada de saída “ao céu” ou “ao inferno” e toda luta seria vã. Por isso, e é isso que esta ideologia espera propagar como conclusão, não faz sentido lutar ou se revoltar. Isso não significa negar totalmente a liberdade. Alguns podem mudar do céu para o inferno no meio do caminho, tal como podem, “se arrepender” e merecer o céu. Mas isso não importa tanto, importa haver sentido em existir um céu e um inferno, os quais devem ser merecidos pela conduta do indivíduo. Deve, claro, haver uma
liberdade de escolha relativa, jamais uma liberdade ontológica como propôs o existencialismo, mas uma liberdade condicionada pela “índole imutável do indivíduo”, e esta suposta índole, a alma para os religiosos, previamente dada às ações do ser humano no mundo, não pode ser também tomada como socialmente situada, os aspectos estruturais da sociedade devem sempre ser escondidos por ela, devem parecer secundários ao esforço pessoal; ao mérito individual e ao biológico, claro, pois aspectos genéticos tomados como simples dados aparentemente justificam desigualdades de modo senão justo, ao menos certamente natural e inelutável. Toda esta ideologia é importante
também porque, com isso, naturaliza não apenas o bem, mas, junto com ele, o mal. Parece que é simplesmente uma coisa humana, sempre haverão aqueles que cometerão tais atrocidades, o sistema político e a organização social não têm nada com isso. Se não fôssemos tão bombardeados com esta ideia por todos os meios desde que nascemos, penso mesmo que esta sociedade na qual vivemos não se sustentaria com todas as suas contradições por muito tempo. É preciso também convencer bem que aqueles que resistem às opressões, aqueles que se voltam contra ela, que não a aceitam ou a naturalizam, são justamente aqueles maus dos quais falávamos, aqueles prontos a reproduzir o
que condenam, e, até por isso, estão tomando tais atitudes de resistência. Sobre isso, exemplos atuais não nos faltam: o manifestante vândalo; o Hamas; a feminista…Situações completamente distintas, mas com um e mesmo tipo de discurso, que culpabiliza sempre aqueles que resistem pela opressão que sofrem, exatamente no momento em que se levantam, e que pretende esconder todas as diferenças estruturais e mutáveis de nossa sociedade sob o véu de uma igualdade natural forjada sobre esta própria desigualdade.
Publique mais, Camila. Gosto muito dos seus textos. Força!